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Este ser está comigo o tempo todo

Ele tem vida própria

Convivo com suas limitações

E ele com as minhas

Me expresso através dele

E ele de mim

Como é mais fácil que os outros o vejam, costumam me julgar pelo que ele é

Alguns dizem que existem muitos tipos desses seres por aí

Outros já berram que não existem mais do que um par

Eu não sei sobre os outros, mas esse aqui que está sempre comigo não cabe num par de definições

É uma jornada entendê-lo, mas é o por ele que sinto o mundo

O deserto dos sentimentos

Já era tarde da noite. Eu estava sozinho, dirigindo de volta para casa. Dessa vez não tinha ninguém me esperando. Isso era novo. Eu ainda não tinha pensado em como seria estar sozinho em casa. Se naquele momento eu decidisse não ir pra casa, nada mudaria para ninguém além de mim. Ao mesmo tempo que eu pensava que isso poderia ser liberdade, também sentia que isso poderia ser um vazio onde ninguém estaria se importando com minha existência naquele momento. Se eu sumisse, só no outro dia iriam perceber. Continuei dirigindo para casa.

Liguei o rádio e coloquei as músicas que eu queria, sempre me preocupar se alguém iria gostar daquilo ou não. De vez em quando algumas poucas pessoas que estavam na rua olhavam, outras nem percebiam (ou não se importavam) com minha passagem ali. Ainda não sabia se aquilo era liberdade.

Chegando em casa, coloquei as chaves no mesmo lugar de sempre e andei pela casa só para conferir que não tinha ninguém mesmo. Entrei em todos os cômodos e, depois de ver que estava realmente sozinho, sentei no sofá. Fiquei ali por um tempo parado, só sentindo aquela atmosfera diferente. Só as luzes que eu queria estavam ligadas, só tinha barulho se eu fizesse.

Quanto mais parado do lado de fora, mais meus pensamentos tinham espaço para navegar. Decidi ir deitar. Não estava com sono, mas queria ficar lá estirado vendo o reflexo das luzes da rua refletidas no teto. Enquanto eu andava em direção ao quarto, percebi que haviam tantos detalhes na casa que eu nunca havia notado.

Deitei e fechei os olhos. Depois de pensar sobre tudo aquilo que parecia ser urgente, minha mente começou a navegar no tempo. Vieram lembranças de quando eu era criança, depois outras mais recentes. Algumas me deixavam feliz, outras me faziam tremer de vergonha. Nossa! Como eu fiz aquilo?! Passei por tantas memórias que comecei a perceber relações entre elas. Memórias se ligaram. Comportamentos que eu não percebia se mostraram tão repetitivos. De vez em quando minha mente viajava para o futuro e eu começa a ver todas as possibilidades que pairavam lá. Planos, vontades, possibilidade de reconectar com o passado. Tudo parecia ser possível. Mas o que escolher?

Minha mente já tinha viajado bastante e provocado mais sentimentos do que um filme francês. Cansada de viajar, ela decidiu me mostrar o abismo. Comecei a pensar sobre minha identidade. O que eu deveria colocar no campo bio do Twitter? Será que eu sou o que eu faço ou o meu trabalho ou as bandeiras que carrego? Como fazer a vida ter sentido? Como eu não conseguia pensar na possibilidade de a vida não ter sentido, então qual seria o da minha? E aquilo tudo que eu gosto, por quê? Ah, quanto mais eu encarava esse abismo mais assustado eu ficava. As perguntas só eram respondidas com outras perguntas. Nenhuma resposta. Onde é que aperta o botão para descer na próxima parada? Já estava desconfortável isso.

Eu sabia que ia achar respostas se continuasse pensando, mas o quanto estou disposto a encarar esse abismo? Vi que nem tudo é respondido de uma vez. Acabei dormindo e meus sonhos se misturando com minhas ideias. Acordei no meio da noite com o quarto gelado porque a janela havia ficado aberta. Fui à cozinha, tomei um copo d’água, sentei na minha mesa de trabalho, escrevi cinco coisas que eu queria realizar, coloquei o despertador para 6h00, fechei a janela voltei a dormir.

O tempo é altamente agressivo. Eu preciso encarar o abismo, mas vou agir antes que o tempo acabe.

O que o incêndio levou a enchente trouxe de volta

Nesse carnaval eu me fantasiei de demônio, me pintei inteiro de vermelho com tinta de teatro e fui pra rua, com uma calça, muitos colares, e uma bolsa. Os colares, a calça e a bolsa voltaram completamente pintados de vermelho da tinta que escorreu do meu corpo, assim como as paredes do meu banheiro, o assento do vaso, o lençol e a fronha do travesseiro. Três dias depois eu ainda tô tirando tinta vermelha do meu cabelo e descobrindo manchas frescas espalhadas pelas minha coisas.

Nessa brincadeira mais umas tantas roupas mancharam de tinta, por que aparentemente, mesmo três dias e um banho de mar depois, eu ainda estou suando vermelho. Uma camisa, que eu comprei da minha amiga há uns cinco ou seis anos atrás e que por sinal é uma das minhas peças de roupa favorita, ficou rosa; e uma cueca, que eu comprei há pouco tempo mas que também me é muito querida, ficou laranja. A camisa rosa eu não curti, mas a cueca eu botei fé.

Eu não sei se minhas roupas vão voltar a ser o que elas eram antes, nem as que foram pintadas diretamente, nem as que só foram lavadas juntas, mas que pegaram a cor das outras mesmo assim. Pode ser que algumas voltem ao normal aos poucos, outras me parecem que ficaram manchadas pra valer; e honestamente, acho que só me resta aceitar. Eu tô firme e forte, deixando de molho, esfregando com a mão.. mas eu prefiro ter a roupa manchada do que rasgar ela na agonia de tirar as manchas. É o melhor que eu posso fazer no momento.

Às vezes, o melhor que eu posso fazer não parece ser o suficiente, especialmente no fim do dia quando eu tenho que voltar pra casa pra dormir sozinho nos meus lençóis manchados, ou quando eu tenho que acordar cedo pra compensar as horas do carnaval em um emprego que tantas vezes me traz muito mais estresse do que alegria; é como se fazer a coisa certa não recompensasse.

Mas a vida já me ensinou mais de uma vez que as respostas que a gente busca raramente aparecem quando a gente quer, mas que elas sempre aparecem quando a gente precisa. No fim tudo segue um fluxo, tudo se endireita de um jeito torto e as coisas não são tão complicadas quanto parecem. Eu me pintei inteiro de vermelho, e me senti incrível; tô triste pela camisa, mas gostei da cueca.

Meu chefe acha que eu não sou um adulto de verdade, por que eu só queria me sujar e não pensei em como me limpar. Eu acho que ele tinha que cuidar da própria vida, mas como é ele quem paga meu salário, dei uma risadinha.


O nome desse texto veio dessa música