Tudo pelo Álibi 1 – Venenos! Segredos! Alcaparras!

Tudo era suntuoso sob as luzes do Antares. O restaurante, famoso entre a comunidade artística pela harmonia cítrica dos seu pratos, aproveitava a estrutura de uma antiga escola de dança, espalhando mesas entre saguões com imensos espelhos, corredores sinuosos e pequenas salas individuais – antigos camarins que ainda guardavam a atmosfera magnética de um prestígio iminente. As luzes alaranjadas entorpeciam mais que os drinks, e às vezes um espelho jogava um fio de luz por baixo das mesas, iluminando o movimento das pernas que ali jantavam. 

O lugar não ficava em nenhum dos bairros fortemente gentrificados e nem servia o corte de carne do momento, não buscava ser visto pelas celebridades efêmeras nem cultuava as reservas impossíveis, então as pessoas importantes não costumavam ser vistas ali, mas pessoas interessantes sim. As pessoas interessantes apreciavam a meia-luz, a privacidade das mesas individuais e a possibilidade de encontrar o restaurante vazio em um meio de semana. 

Carla era uma dessas pessoas. 

Escultora, cenografista e colunista de viagens, ela costumava jantar ali ao menos uma vez por semana. Sentava sempre em uma das mesas mais reservadas, e escrevia as premissas de sua coluna depois de uma viagem, ou poemas que estampariam as paredes das suas exposições. Tinha até feito amizade o suficiente com o dono do restaurante, Giovanni, para que ele a deixasse fumar lá dentro. Hoje porém, ela escolheu a cabine reservada por outros motivos. Hoje Carla Daniela Bauman de Azevedo iria matar seu marido.

Ela chegou lá primeiro, bateu um papo com Giovanni, fumou um cigarro na janela, e observou o veneno que ela mesmo preparou sob as luzes fugidias do camarim. Ela não tinha decidido ainda por que que iria matar o marido, o motivo, mas já tinha decidido o como. Uma semana reduzindo a água dos camarões que ela comprou no mercado. Ele sempre esperava o prato chegar pra ir ao banheiro, uma da inúmeras manias dele tinha que já a estavam irritando, então ela iria aproveitar o intervalo pra deitar algumas gotas no seu prato, o suficiente pra causar uma reação alérgica fulminante, e iria no banheiro pra não ter que assistir. Uma contaminação cruzada, uma fatal eventualidade. Ela carregou no rímel pra tornar tudo bastante teatral. 

O Marido chegou bem mais atrasado que já era de costume, e Carla já tinha bebido uma garrafa inteira de vinho enquanto esperava.

  • Aah, então você veio? Que honra a minha.
  • É claro que eu vim, quando foi que eu te dei um bolo? – Ele beija o rosto dela.
  • Não faz nem duas semanas.

Ele ri.

  • Bom, eu sou importante.

Ela ri de falsidade, mas no fundo agradece que logo mais ele já vai morrer. Então ela pensa que talvez essa seja a última piadinha arrogante que tenha que ouvir dele e fica um tanto quanto empolgada, até orgulhosa. Ela sente vontade de dar uma risada vilanesca mas se controla virando a taça de rosé. O próprio dono do restaurante é quem vem atendê-los.

  • E aí, casal! Nossa, como vocês estão bonitos. Tão comemorando o quê hoje?
  • Nada não, só aproveitando a noite mesmo. – Carla sorri, e ela é linda.
  • Na verdade, hoje é dia de comemorar sim. – O marido olha de Carla para Giovanni – Fechei um contrato que vai revolucionar essa cidade. – Ela sorri.
  • Babado! – Giovanni bota dois menus e uma carta de vinhos na mesa – Mais um vinho então, ou um espumante? E pra comer, o de sempre?
  • Pra mim o de sempre, por favor.
  • Hmmm, você lembra daquele macarrão que eu comi aqui uma vez na semana do meu aniversário? Era com alcaparra? – Ele fala com Giovanni.
  • Você vem aqui? – Carla se supreende, ela não se lembra de ter trazido ele antes, ainda mais na semana do aniversário.
  • Ah, de vez em quando, tem clientes que ficam aqui perto.
  • Hm.
  • Vinho branco ou tinto? – O garçom interrompe.
  • Eu não vou beber mais, obrigada, vim dirigindo. – Carla responde sorrindo.
  • Ah para, não dá nada, hoje é um dia especial. Um champagne, bem leve?
  • Eu aceito um champagne – responde o marido, e olhando para Carla – é um dia especial.

Ela concorda

  • É sim. 
  • É isso aí. Ressaca na quinta é chique, sinal de bom gosto. Eu trago uma sobremesa de cortesia porque você estão lindos demais, e não é todo dia que tem gente tão importante aqui. 

Ainda era um mistério pra Carla como um engenheiro de software se tornou uma pessoa tão popular da noite pro dia – talvez alguma coisa a ver com a mania de ostentar inovação em seus negócios que os empreendedores da cidade cultivavam – mas a verdade é que Boa Ventura gostava de personalidades para exaltar. Pessoas jovens, bonitas e bem sucedidas; de boas famílias, mas discretas o suficiente pra passarem por pessoas comuns; politizadas a ponto de serem consideradas sensatas, mas não tanto a ponto de terem uma opinião de fato. Ele tinha tudo isso e um sorriso de cafajeste que faria do processo de destruir sua imagem algo tão delicioso quanto glorificá-la, então o marido tinha todo motivo pra ser importante. Além disso, era vegano, coisa que estava pegando muito bem nos círculos sociais de Boa Ventura.

Eles conversaram sobre amenidades, Carla contou sobre a exposição que planejava fazer, que alugou o espaço para daqui dois meses, e que pretendia anunciar a data no dia do baile de primavera, pra que a notícia ecoasse entre os grupos finos e artísticos da cidade. O Marido falava sobre as possibilidades que ela tinha de ir além, que a lista de contatos dos que foram na exibição era mais valiosa que o caixa que receberia dos ingressos, que ela deveria ter câmeras atrás das peças para estudar as reações das pessoas e as pistas sobre seus estilos de vida que estivessem em suas roupas e acessórios.

  • Que maluquice, querido. – Ela vai até a janela onde acendo um cigarro e se senta no beiral. – Eu não quero fazer espionagem, eu quero fazer arte.
  • Mas você vai fazer arte, isso não é sobre o que você tá fazendo, mas sobre o que você está fazendo com o que você está fazendo, você me entende.
  • A questão é que você tá sempre querendo tirar algo das coisas, vendo as coisas como um meio pros seus objetivos, mas você tá vendo elas pelo que elas são.
  • A questão – ele se levanta e caminha em sua direção- é que eu sei que você chega mais longe quando se tem poder. Informação é poder.

Ela dá um trago olhando nos seus olhos.

  • Eu não quero poder.
  • Ah é? O que você quer então?
  • Quero ver o circo pegar fogo.

Ele ri, deliciosamente.

  • Ai, amor, você acaba comigo.

Carla espera que sim. Ela fuma de novo pra se impedir de beijar o marido, depois entrega o cigarro pra ele.

  • Segura pra mim, eu vou ao banheiro.

No banheiro ela se abana. O sorriso de cafajeste tornava tudo bem mais difícil. Talvez ela pudesse esperar mais uma semana… mas seria um desperdício de toda a mise en place que tinha feito. Ela demora pra recuperar a compostura e pra esvaziar o litro de vinho da bexiga. Ok, foco, Carla. Ela volta para a mesa e o encontra, para sua surpresa, já com os pratos na mesa e o garfo na boca.

  • Opa! É minha primeira garfada, te esperei mas tá tão cheiroso e eu tô com tanta fome…
  • Não tem problema – mas tinha – tô surpresa de ter chegado tão rápido. – Ela tenta recalcular como vai conseguir botar o camarão na comida agora. – Você não vai ao banheiro?
  • Ah não, eu vim antes de chegar. Quer um champagne?

Eles comem um tanto em silêncio, os pensamentos de Carla permanecem focados no veneno que repousa em seu colo, dentro da bolsa. O Marido sorri de vez em quando, elogia ela, até que a pergunta:

  • Você tá quieta demais. O que que tá acontecendo?
  • Eu… Tô pensando.
  • Em quê?
  • No seu contrato – ela improvisa – achei que você fosse me contar sobre, já que a gente tá comemorando, mas você não falou nada – boa, Carla!
  • Ah, pois é… Eu tava me perguntando se eu te falava sobre. – Ele engole em seco. – Você sabe que a companhia vem ampliando a carteira de serviços que a gente oferece.
  • Sei.
  • A gente desenvolveu um produto muito inovador, e esse produto tá gerando uma receita imensa – ele toma um gole de champagne – e a gente queria investir essa receita, a gente só não tinha um fundo que topasse – ele tosse – que topasse receber ele.
  • Desculpa, um fundo? – Carla estava confusa, já tinha ouvido muita bobagem do trabalho do marido, mas ele nunca tinha aberto a boca pra falar de finanças.
  • É mais um fluxo, ele continua rendendo – ele tosse de novo, agora mais forte – e vai continuar ainda. Esse macarrão tá com um gosto diferente.
  • Mas vocês fazem softwares pra serviços, não tô entendendo como que isso rende tanto. Um fundo?

Ele tosse violentamente.

  • Acho que eu fui envenenado.

Carla levanta o olho do seu prato, a mão que não segura o garfo agarra a bolsa com firmeza.

  • Não foi não.
  • Na comida… – Ele tosse novamente e arfa – Acho que tá na comida.
  • Não viaja, toma um espumante – ela fala enchendo a taça. 
  • Acho que tem nozes na comida.
  • Nozes? 
  • Eu sou alérgico a nozes. – Ele traga o ar com dificuldade.
  • Não, você é alérgico a camarão.
  • Não – sua voz é um chiado
  • Sim, você não come camarão.
  • Eu sou vegano. – Ele tenta se levantar.
  • Era nozes então?

Curvado sobre a mesa, ele tenta respirar e beber um gole de espumante, mas seu pescoço incha a cada segundo.

  • EI! EI! QUÊ ISSO? – Carla se levanta e vai em sua direção. Ela tenta uma manobra de Heimlich, mas se dá conta que ele não está engasgado. O marido tomba no chão. – Você é alérgico a camarão!

Ele nega com a cabeça, os olhos vermelhos. Ela tenta tirar os colares que apertam seu pescoço, supresa, confusa. 

  • Meu amor, você vai morrer?

Ele faz que sim com a cabeça. Isso não está saindo como ela imaginava, apesar de estar saindo como ela imaginava. Não era pra ele morrer assim, ela tá tão acesa que não vai nem conseguir chorar desse jeito. Ela achou que fosse estar no banheiro nessa hora, não era pra ela ver ele morrendo, engasgado com nozes. Nozes? Quer dizer que o camarão dela não ia nem fazer efeito? Ela salva ele só pra matar depois? Ela consegue fazer um veneno a base de nozes? Não tem como reduzir água de nozes, tem? Nozes tem óleo! Ela podia ter matado ele em casa com o óleo de amêndoas do banheiro, então?

O garçom (e dono do restaurante) entra pela porta tomando ele mesmo uma taça de espumante, faceiro.

  • E aí pessoal, tão gostando da comi.. que que tá acontecendo aqui?

Carla sai de cima do marido, apontando o rosto inchado.

  • Ele tá morrendo.
  • NO MEU RESTAURANTE?
  • E da sua comida! Você botou nozes na comida dele!
  • Com licença, querida, eu NÃO botei nozes na comida dele, eu mesmo coloquei no sistema que era sem nozes, ele é alérgico, olha aqui. – Ele puxa o ipad da cintura e busca o pedido deles no sistema, mas a tela mostra um aviso de erro no lugar. – Ué, que estranho. – Ele tenta acessar a nota fiscal mas o sistema todo parece fora do ar.

Carla treme, seus olhos lacrimejam, ela começa a sentir o drama vindo das estranhas.

  • Pelo amor de deus, faz alguma coisa!

O garçom tenta fazer uma manobra de Heimlich. Os olhos do Marido já estão revirados e sua língua começa a projetar pra fora.

  • Liga pra ambulância!

Carla busca pelo celular em sua bolsa, e com isso um pequeno frasco de vidro cai, rolando aos pés de Giovanni.

  • Quê que é isso?
  • Oi? – Ela vê o frasco em sua mão e sente o sangue gelar. – Isso? Não é nada. É uma homeopatia. Pro cabelo.

Giovanni abre a pequena rolha e leva ao nariz, sobrancelhas arqueadas.

  • Isso é camarão?
  • É homeopatia de camarão.
  • Garota, se você vai matar seu marido no meu restaurante tenha pelo menos a decência de assumir.
  • Ele não é alérgico a camarão. Ele morreu de nozes! Suas nozes!
  • Você já tá assumindo que ele morreu?

Os dois olham pro moço caído no chão, seus olhos estão bem abertos, mas também não parecem que vão fechar tão cedo. Ele está imóvel.

  • Ok – Giovanni entrega o frasco de volta pra Carla. – Esquece a ambulância, eu vou chamar é a polícia.

Carla observa o líquido em sua mão, atônita. Era pra ela matar o marido e não ser presa, agora ela não matou o marido e vai ser presa. Isso não saiu como planejado. 

  • Se você chamar a polícia você vai preso.
  • Desculpa – Giovanni abafa uma risada – preciso te lembrar: você matou seu marido.
  • Você matou meu marido.
  • Você tem um veneno na bolsa.
  • Que não funcionaria porque ele não é alérgico a camarão, e sim a nozes. NOZES – ela aponta o dedo par ao prato – que estavam na comida que VOCÊ serviu pra ele.
  • Foi um erro do sistema!
  • Do SEU sistema!
  • Você negou assistência!
  • Você também. – Giovanni pausa. Percebendo que conseguiu uma abertura ela completa. – E você deixa as pessoas fumarem aqui dentro, isso também é crime.

Ele fica em silêncio.

  • Mesmo que você não seja preso, o que vai ser do Antares depois que ele virar cena do crime? As pessoas não vão querer comer aqui, isso se é ele não ficar fechado com fita amarela por meses… ou anos?

Ele puxa uma cadeira pra se sentar, pensativo. Depois de um breve momento ele se manifesta.

  • Eu não terminei nem de pagar a reforma ainda.

Ela puxa seu queixo pra cima suavemente com o dedo indicador, fazendo-o olhar nos seus olhos.

  • A gente pode se ajudar. 
  • Como?
  • Só eu e você sabemos do que aconteceu aqui. 
  • E precisa continuar assim, se alguém souber que ele morreu vai melar pra nós dois.
  • Se a gente sumir com o corpo ninguém vai saber.
  • Mas ele vai ter desaparecido.
  • Já é melhor que ter morrido.
  • Ele chegou depois de você.
  • Ele veio com o próprio carro.
  • Então o carro não pode simplesmente ficar aqui no estacionamento, a gente precisa sumir com ele também. Mas não… se ele simplesmente sumir… 

Ele continua sentado pensando, olha pra Carla depois pro Marido. Ele alcança a garrafa de espumante e bebe um gole imenso direto do bico.

  • Ok, eu já sei o que a gente pode fazer. Você sai primeiro e vai pra casa. 

Ele caminha em direção ao corpo e o agarra por trás das costas, passando os braços pelos sovacos do morto.

  • Como assim? É isso?
  • Sim, amanhã de manhã você faz uma ligação pra polícia, diz que ele começou a agir estranho, você voltou pra casa antes e deixou ele aqui mas ele nunca mais apareceu. – Enquanto fala, Giovanni arrasta o corpo até uma parede onde repousa uma bela penteadeira.
  • E você? 
  • Eu cuido do carro e dou um jeito de parecer que seu marido fugiu da cidade. A gente se encontra amanhã pra cuidar do corpo. 

Ainda segurando o morto ele dá um chute na penteadeira. Depois, com um leve empurrão do quadril, pressiona uma das ripas de madeira da parede atrás dele. Um suave clic ressoa e toda a estrutura de espelho-móvel-e-parede se abre em uma porta, que dá para uma escadaria de paredes amareladas e chão de cera vermelha. Carla observa atônita enquanto ele arrasta seu morto Marido pelo vão da porta secreta.

  • Mas o quê que é isso?
  • Escuta, Carla né? A gente não tem tempo. Você planejou isso, não foi? Agora se compromete e vai até o final. 
  • E como que eu sei que posso confiar em você?
  • Confiar em mim? Minha senhora… eu tô ocultando o cadáver do seu marido. Você não precisa confiar em mim, você pode só me chantagear.

Ela reflete por um momento nessa inesperada e elétrica sabedoria proferida.

  • Vai! – Ele diz.
  • Tá bem, tá bem. – Ela se vira para a porta, mas depois dá meia-volta – Obrigada – e, porque pareceu de bom tom – a comida tava ótima.
  • Imagina querida, bom saber. – Ele responde enquanto some no corredor. Antes da porta secreta fechar ela ainda o escuta mandando beijinhos. 

Ela veste seu casaco e sai da cabine, fechando a porta atrás de si; e sob as luzes do Antares, os dois cúmplices seguem suas partes do plano. Giovanni carregando o corpo, e Carla carregando uma pergunta.

Como ele sabia que o seu marido era alérgico a nozes?

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